quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Giovanni Maria de Agostni, de Sizzano ao Novo México: o Eremita de Dois Mundos

Reproduzo, aqui, a tradução de parte da extensa reportagem que um dos jornais publicou logo após a exibição do documentário "A Maravilha do Século". As sessões aconteceram nos dias 15 e 16 de fevereiro de 2024, em Sizzano e Fontaneto, duas pequenas cidades da província de Novara, na região do Piemonte (Itália), terra natal do "nosso" monge João Maria e de seus pais. Alguns jornalistas estiveram presentes na exibição, além de políticos locais e público interessado.

Eu e o prof. Franco Dessilani, pesquisador de Novara que tomou conhecimento das histórias do monge em 2017, por ocasião de minha primeira visita à região. Tornou-se um entusiasmado divulgador das façanhas do eremita.

"Um santo popular ou um personagem fora do comum que escolheu viver como um eremita medieval? Um taumaturgo capaz de realizar curas milagrosas ou um habilidoso pregador capaz de cativar as populações indígenas latino-americanas? E como explicar sua morte, assassinado em uma caverna no Novo México? A vida de Giovanni Maria De Agostini, nascido em 1801 em Sizzano, é um verdadeiro mistério. Seu pai, Mattias de Agostini, e sua mãe, Domenica Monfrini, eram arrendatários, trabalhadores agrícolas que se mudavam de um lugar para outro todos os anos, indo aos domínios das famílias mais ricas, que ofereciam trabalho e o mínimo para a sobrevivência. Assim, os De Agostini de Fontaneto se mudaram para Sizzano, onde suas pegadas se perderam, acabando em algum grande casarão entre a área de Novara e a vasta planície piemontesa.

Giovanni não tinha nenhuma intenção de se tornar um trabalhador braçal: ele tinha aspirações maiores. Sonhava em vestir o hábito religioso e ir pregar a mensagem cristã para os povos que não a conheciam. Assim, ele parte primeiro para Roma e enfrenta uma primeira experiência em um convento, mas a regra o sufoca e ele sente a necessidade de testemunhar o Evangelho de forma mais próxima das pessoas e faz a escolha decisiva: ele se tornará um eremita e peregrino, viverá de esmolas, recusando qualquer conforto.

Ele deixou a Europa e, em setembro de 1838, desembarcou em Caracas, na Venezuela. Aqui começa uma longa "odisseia" pela América do Sul, passando pelo Equador, Colômbia, Peru até chegar ao Brasil em 1844.

Monge João Maria, como era chamado pelo povo, ia pregando vestido como um frade capuchinho. Ele sabia criar um contato autêntico com as pessoas, as curava com ervas e com a água que tirava das nascentes. Era recompensado com comida, doando crucifixos e terços de madeira por ele fabricados. Alexandre Karsburg, professor e pesquisador brasileiro, descobriu a figura de De Agostini quase por acaso: "Eu tinha ouvido falar dele através dos relatos da tradição oral dos estados mais meridionais do Brasil como um santo popular, que pregava em nome de Santo Antão Abade. Então, comecei a pesquisar no meu doutorado em História e, ao final, escrevi um livro sobre sua vida".

Karsburg veio à Itália, à terra dos De Agostini, em Sizzano e Fontaneto, onde exibiu o documentário da cineasta brasileira Márcia Paraíso, bem como apresentou suas pesquisas junto com Franco Dessilani, o historiador de Novara que encontrou uma série de documentos sobre a família. "Em Fontaneto, essa família trabalhava nas terras dos De Maino e morava na fazenda Rampini. Temos o registro de casamento, de 1796, e os registros de óbito dos dois primeiros filhos. Em Sizzano, eles ficaram por um par de anos, depois não se sabe mais nada, pois eles definitivamente se mudaram para outro lugar". Gianni Cantoia, que consultou os arquivos paroquiais em Fontaneto, confirmou que "dos De Agostini temos registros desde o século XVI, mas ainda não confirmamos os laços de parentesco com Giovanni Maria de Agostini". No Brasil e no Peru, o viajante eremita - acrescenta o professor Karsburg - é lembrado por meio de inúmeras devoções, e os festejos podem durar até cinco dias. As palavras e feitos de Agostini se tornaram lendários."

Reportagem por ser visualizada no SITE do jornal SDNews.

terça-feira, 11 de julho de 2023

O registro de nascimento do futuro "santo"

O Registro de batismo não deixa dúvidas: antes de ser considerado santo e empreender uma das mais grandiosas peregrinações pelas Américas, o monge João Maria teve que vir ao mundo - e o fez da forma mais tradicional possível!

“No ano do Senhor de 1801, em 11 de julho, o vice-pároco Calzone batizou uma criança nascida hoje. Pais: Mattias de Agostini, filho de Giovanni Maria, e Maria Domenica Monfrini, filha de Angelo Maria, cônjuges desta paróquia, a quem impôs o nome de Giovanni Maria (Ioannes Maria). O padrinho foi Antonio Delmestro e Giovanni de Sizzano.” (Traduzido do Latim a partir do documento abaixo apresentado)


Arquivo Paroquial de Sizzano, Anagrafe, Battesimi, fald. 10, n. 14, anno 1801


Conhecido há alguns anos pelos historiadores, esse documento dissolve definitivamente as dúvidas que ainda restam sobre onde e quando nasceu o futuro monge João Maria. E ainda: contrariando uma lenda surgida de que Agostini descendia de família nobre, os Agostinis, na Itália do início do século 19, eram pobres camponeses que vendiam sua força de trabalho em fazendas da região do Piemonte.

O pequeno Giovanni Maria, cujo nome vinha de seu avô paterno, tinha uma irmã três anos mais velha que ele, de nome Maria Francesca. Em 1801, moravam todos em uma casa/estábulo chamada "La Bergamina", de propriedade do Conde Tornielli (Ver pesquisa feita na Itália para o documentário "A Maravilha do Século", até o minuto 30'34'').

O trabalho do historiador é desvendar lendas e mitos, buscar a verdade ou, ao menos, aproximar-se dela.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Lembranças de um "conhecido eremita italiano" na região de Misiones, Argentina

Na década de 1870, havia ainda forte lembrança da passagem de certo eremita italiano pelo Rio Grande do Sul e pelo nordeste da argentina, no conhecido Cerro do Monge. Assim o comprova os escritos do alemão Maximilian Beschoren (1847-1887), engenheiro de formação que veio para o Rio Grande do Sul trabalhar na colônia alemã de Santa Cruz do Sul e em outras áreas da província, como nas Missões.

"Destas elevações, uma nos chamou a atenção: o Cerro do Monge, situado em Corrientes [Argentina] que declina bruscamente até o Rio [Uruguai]. Possui esse nome devido a um conhecido eremita italiano que durante muito tempo fez das suas artimanhas numa fonte sacra, perto de Santa Maria da Boca do Monte e para cá se recolheu em solidão, no final de 1852" (Beschoren, 1989 [1876]).

O alemão aventurou-se pela botânica, geografia e geologia, sendo considerado pioneiro no estudo de meteorologia no sul do Brasil. Escreveu sobre as antigas Missões Jesuíticas, publicando seus artigos em importantes Revistas científicas da Europa, além de ter colaborado no jornal teuto Deutsche Zeitung, de Porto Alegre.

O Cerro do Monge a que se refere Maximilian está localizado em San Javier, na província de Misiones, Argentina, ao lado do Rio Uruguai, e de frente para o Brasil. Ali de fato esteve o eremita italiano João Maria de Agostini, conhecido como monge João Maria, no ano de 1852, conforme pude constatar por documentos da época publicados em meu livro "O Eremita das Américas". 

As lendas que se criaram sobre a presença dele na região estão vivas, fazendo com que o Cerro seja um local de peregrinação que atrai inúmeros devotos, aventureiros e curiosos há muito tempo - assim como em tantos outros pontos das Américas por onde passou o eremita italiano. A figura histórica confunde-se com o imaginário por meio de reconstruções da memória, o que só valoriza os lugares ligados ao eremita e às devoções por ele iniciadas.

Fontes: 
Beschoren, Max. Impressões de viagem na província do Rio Grande do Sul (1875-1887). Porto Alegre: Martins Fontes, 1989.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Maximilian_Beschoren

https://www.portaldasmissoes.com.br/site/view/id/1180/lenda-do-monge-e-o-cerro-pelado.html

sábado, 7 de janeiro de 2023

Escritos perdidos: o massacre dos Mucker e o direito à memória

    Abro espaço neste Blog para apresentar uma resenha que fiz do livro "Escritos perdidos", de autoria de João Biehl e Miquéias Mügge, recentemente lançado pela Editora OIKOS. Como historiador público que pretendo ser e imbuído de espírito crítico que me incomoda há tempos, estou interessado em divulgar pesquisas sérias feitas por profissionais capacitados. Além disso, sou cidadão que fica indignado quando se depara com injustiças. E uma delas ocorreu há quase 150 anos, com colonos alemães envolvidos em uma trama nefasta capitaneada por jornalistas germanistas e concidadãos movidos por ressentimentos e desejos de vingança. Ao término da leitura do fantástico livro de Biehl e Mügge, tomei a firme decisão de divulgar tal pesquisa, aliando-me a eles na tarefa de tentar reparar um erro histórico. E ainda, mostrar aos descendentes dos colonos Mucker que eles têm direito à verdade e a uma memória digna. Caso alguém queira debater sobre o episódio Mucker, sobre o livro ou a resenha que segue, favor entrar em contato. Boa leitura!

“Escritos perdidos, vida e obra de um imigrante insurgente – Johann Georg Klein (1822-1915)”, de João Biehl e Miquéias Mügge, São Leopoldo: OIKOS, 2022. 486 p.


Um manuscrito perdido é o ponto de partida de uma pesquisa minuciosa feita pelos professores doutores João Biehl e Miquéias Mügge, em livro intitulado “Escritos perdidos”, que narra a vida e a obra de um imigrante germânico chamado Johann Georg Klein (1822-1915). O livro é dividido em quatro capítulos, com um prólogo e um epílogo que não podem ser confundidos com introdução e conclusão. O manuscrito de Johann Georg Klein – Vom Katechismus, perdido por mais de um século e que estava de posse dos descendentes do historiador Leopoldo Petry, está traduzido e transcrito na íntegra na segunda metade do livro. Nas páginas finais, um conjunto de cartas escritas pelo personagem e por ele redigidas em nome da líder Mucker Jacobina Mentz Maurer e de sua irmã Carolina Mentz. A obra ainda é repleta de mapas, fotografias, litografias, reprodução de cartas, trazendo qualidade e informação ao texto muito bem construído.

O manuscrito é um tratado teológico luterano feito pelo então adolescente Johann Georg Klein – ou João Jorge Klein, para facilitar nosso entendimento – quando ainda estava na Prússia Renana e tinha apenas 16 anos, ou seja, escrito em 1838. Tal manuscrito teológico luterano, de feições populares, denominado Vom Katechismus, foi, durante algum tempo, considerado o “catecismo dos Mucker”. Tal livro foi trazido por João Jorge Klein ao Brasil, guardado com zelo até o final da vida para, sem seguida, ser repassado pelos filhos ao historiador acima citado, Leopoldo Petry, para que o publicasse. Um verdadeiro “livro transatlântico”, segundo palavras de Biehl e Mügge.

O texto do jovem João Jorge Klein de fato revela que ele “defendia ideias de cunho petista e valorizava a participação leiga na comunidade...” (Biehl; Mügge, p. 17). O pietismo alemão veio com o grupo que chegou ao sul do Brasil no início da imigração, na década de 1820, e pode explicar, em parte, o que motivou a família Mentz/Maurer a iniciar o movimento de separação total com os demais grupos luteranos das colônias germânicas do sul do Brasil. Porém, o que me provocou a escrever esta resenha não foi tanto o tratado teológico do jovem João Jorge Klein – por sinal, interessante em vários sentidos e que exige um estudo mais demorado e atento –, mas a confirmação de uma ideia que sustento há tempos, qual seja: para compreendermos a fundo um movimento religioso é preciso, antes, entender as lógicas e dinâmicas internas das comunidades/grupos que estão envolvidos em tal movimento.

O livro de Biehl e Mügge segue uma ordem cronológica simples mas didática, reconstruindo a trajetória de João Jorge Klein da Prússia Renana até o Brasil, fazendo as devidas e necessárias conexões com os diferentes contextos que o personagem se inseriu e interagiu, ligando sua vida a de outros colonos imigrantes alemães, comparando-as, confrontando-as, do seu nascimento em 1822, em Womrath, região de Hunsrück, na Renânia, até a sua morte, em 1915, na cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul. Com o objetivo de seguir a trajetória de Klein, os autores realizam o entrecruzamento de fontes heterogêneas, encontradas em diferentes arquivos em países distantes, como Brasil, Alemanha e Estados Unidos, em dois continentes. Mostram ainda um talento narrativo ímpar, com um texto envolvente em um enredo repleto de tensão e suspense.

Colono letrado, João Jorge Klein imigrou para o Brasil com a irmã, chegando em março de 1853, seguindo os passos de um irmão mais velho que morava na colônia São Leopoldo desde 1827. Aqui, João Jorge Klein casou-se e teve vários filhos, tornando-se pastor-leigo e agricultor na colônia germânica então chamada Leonerhof (Sapiranga). Por muito tempo João Jorge Klein foi considerado o “mentor intelectual” dos Mucker, a “mente ardilosa” por trás do movimento sedicioso que abalou o Rio Grande do Sul na década de 1870. Essa interpretação foi o resultado de uma propaganda distorcida, tendenciosa que se iniciou com Carlos Von Koseritz, ex-Brummer que chegou ao Brasil no ano de 1851 para combater pelo Exército brasileiro contra os generais portenhos Manoel Oribe e Juan Manoel de Rosas. Após, já em Porto Alegre, tornou-se um dos maiores defensores de um tipo de germanismo orientado a considerar o elemento alemão superior às demais raças. Para Koseritz, aqueles “laboriosos colonos” alemães não teriam como começar um movimento sedicioso sem que por trás não houvesse a “manipulação” de alguém. Esse alguém era João Jorge Klein, que estaria “descontente pela perda de seu posto de pastor-leigo na colônia”, declarava Koseritz.

Acredita-se que não cabe ao historiador julgar, apenas compreender o passado. Pela distância que estamos daqueles fatos, pela quantidade de fontes que temos à nossa disposição e pela ampla bibliografia produzida sobre o movimento Mucker, não há como apenas compreender. Por mais utópico que seja, é preciso buscar a verdade, ou, ao menos, aproximarmo-nos dela. Assim, já é possível apontar os equívocos e responsáveis pelo massacre que aconteceu contra os colonos Mucker em junho/julho de 1874. E é isso que fazem os autores do livro ao longo dos capítulos, sempre embasados por muitas fontes históricas, com interpretações originais e amparados por vasta bibliografia.

Como afirmei anteriormente, não é possível entender o movimento Mucker sem, antes, apreender as lógicas internas dos grupos, seus valores e códigos morais, reconstruir suas redes de parentesco e vizinhança, captar as disputas por terra e rixas entre vizinhos e mesmo parentes; não sem antes analisar o que foi o pietismo alemão que foi trazido, por exemplo, pelo avô de Jacobina, Libório Mentz, em 1824 (referencio o ótimo estudo de Martin Dreher, que escreveu o livro “A Religião de Jacobina”, publicado pela OIKOS em 2017). E assim foi feito por Biehl e Mügge ao longo da obra, trazendo informações novas combinadas as já conhecidas. Aos poucos as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar, construindo um sentido novo ao fatal desenlace que se abateu ao grupo de colonos alemães pejorativamente chamados Mucker.

Na década de 1860, João Jorge Klein disputou na justiça o direito à herança de uma irmã falecida, que era casada com rico comerciante da região. Como procurador neste extenso processo, Klein contatou Lúcio Schreiner, também imigrante e morador da colônia são Leopoldo. De acordo com os autores do livro, Lúcio Shreiner tinha pretensões políticas e de poder que, para serem concretizadas, necessitavam de apoio das comunidades germânicas espalhadas pela região. Pretendia lançar-se candidato a vereador e esperava amplo apoio de seus parentes. Ele era primo, por parte de mãe, de Jacobina Mentz e da esposa de João Jorge Klein. Nas eleições de 1872, contudo, Lúcio Schreiner conquistou apenas 8 votos, não recebendo um voto sequer dos familiares das colônias de Sapiranga. O ressentimento deve ter atingido Lúcio Schreiner. Seu irmão mais velho conseguiu se eleger vereador, cabendo a Lúcio substituí-lo no cargo de delegado de polícia de São Leopoldo. O projeto familiar de poder de Lúcio Schreiner era bastante claro entre os parentes (Biehl, Mügge, p. 158-59). E foi na condição de delegado de polícia que Lúcio recebeu as primeiras queixas contra as reuniões cada vez mais frequentes ao redor do casal João Jorge Maurer e Jacobina Mentz, aos pés da imponente montanha do Ferrabrás, em Sapiranga.

Em maio de 1873, uma petição queixosa assinada por dezenas de vizinhos do casal Maurer, encabeçada por um pastor luterano e um padre jesuíta, e respaldada por inspetor de quarteirão e subdelegado de polícia, chegou às mãos do então delegado Lúcio Schreiner. Dizia a tal petição que as reuniões na casa dos Maurer estavam crescendo e causando a discórdia e a separação das famílias. E a segurança de todos estava em jogo. Esta foi a oportunidade que o delegado Lúcio Schreiner parecia estar aguardando para agir contra seus parentes.

Sua obstinação em persegui-los e aos outros colonos adeptos da “seita” passava por alimentar a impressa da capital com desinformação e distorções de fatos – para isso contando com o apoio de Carlos Von Koseritz. O jornalista e germanista Carlos Von Koseritz, através do seu e de outros jornais, inoculou o veneno do ódio em boa parte da sociedade sul-rio-grandense, sugerindo, não poucas vezes, que os Mucker deveriam ser “linchados” pela ameaça que representavam, que a “seita era imoral por pregar o comunismo e que era uma ameaça à vida comunitária, à propriedade privada e à própria existência do Estado” (Biehl; Mügge, p. 169).

Ao passo que Koseritz atacava os Mucker por preocupar-se com a imagem negativa que tal grupo representava à sua apologia à raça germânica, o esforço de Lúcio Schreiner só se explica se acreditarmos que havia outros assuntos não resolvidos entre ele e os colonos Mucker, e não apenas por não ter recebido votos da parentela nas eleições para vereador de 1872. Enquanto novas evidências não surgem, acreditamos que Lúcio era uma pessoa profundamente rancorosa e vingativa, o que se comprova pela sequência de atos tomados contra os Mucker. Comunicou-se com o Chefe de Polícia da Província alertando-o que o que acontecia na casa dos Maurer era um “fanatismo religioso” que não se podia prever as consequências. Não aceitando a cautela do Chefe de Polícia, Shreiner começou a acusar sem provas, realizou julgamentos prévios, cometeu abuso de autoridade, fez prisões arbitrárias, humilhou e roubou os investigados, criou fatos, espalhou boatos, plantou provas para incriminá-los... nada parecia deter o projeto de vingança de Lúcio Schreiner. Enfim, após tantas ofensivas, conseguiu que os Mucker reagissem violentamente, fazendo com que o Chefe de Polícia da província autorizasse o uso da força, inclusive do Exército brasileiro, contra os colonos insurgentes.

Igualmente atacado, o nosso personagem João Jorge Klein, considerado como o “intelectual” por trás da seita, tentava defender-se escrevendo para os jornais da capital Porto Alegre, chamando os opositores dos Mucker de “mentirosos”, “desonestos”, “covardes”, “patifes”, “lobos”. “João Jorge Klein percebia as articulações políticas e ideológicas que estavam sendo tramadas” contra ele e os parentes. Não tardou para que suas cartas parassem de ser publicadas nos jornais (Biehl, Mügge, p. 177). Klein, então, passou a escrever diretamente aos dois maiores rivais dos Mucker: o delegado Lúcio Schreiner e o jornalista Carlos von Koseritz, tentando demovê-los do caminho que tomavam. Estas cartas estão traduzidas no final do livro aqui resenhado, compondo um conjunto de documentos com alto valor histórico. Dentre as cartas, escreveu uma ditada por sua cunhada e outra pela própria Jacobina Maurer, que fazia apelo ao primo Lúcio Shcreiner para que parasse com as perseguições. A líder Mucker revelava o temor maior: a deportação, ou seja, o retorno para um mundo que já os havia hostilizado. Sabemos que o avô, Libório Mentz, havia emigrado, juntamente com sua família, por desavenças religiosas na comunidade em que vivia na Alemanha. A súplica de Jacobina, contudo, não alterou em nada a postura do primo delegado.

No dia 24 de junho de 1874, João Jorge Klein apresentou-se à polícia de São Leopoldo para fazer uma última tentativa de evitar o derramamento de sangue que se avizinhava. Acabou preso, o que salvou sua vida, pois, na noite seguinte, as colônias começaram a arder em fogo (Biehl, Mügge, p. 183). O Exército brasileiro foi utilizado para aniquilar os Mucker, algo inédito até então, mas que se repetiria nos movimentos de Canudos, na Bahia, em 1897; no Contestado, em Santa Catarina, a partir de 1914; e em outros tantos movimentos populares brasileiros em que a ordem interna do país estava “ameaçada”.

Como não posso reproduzir melhor, cito literalmente os próprios autores que concluem, magistralmente, sobre a injustiça cometida contra os Mucker:

 

Apanhados em boatos e tramas sinistras, desumanizados pelos vizinhos e proscritos pelas autoridades locais, os ostracizados Mucker acabariam por encarnar a figura monstruosa em que tinham sido moldados [grifos meus]. Incapazes de vislumbrar um futuro que não fosse o de sua aniquilação, buscaram vingança e justiça com as próprias mãos. (...)

 

As colônias alemãs do Império brasileiro haviam se tornado palco de uma fúria armada generalizada. Heróis da Guerra do Paraguai [1864-1870] galvanizaram grupos de vizinhos armados [criando milícias de colonos], que retaliaram, incendiando propriedades de famílias Mucker nos rincões mais distantes de São José do Hortêncio e Linha Nova. O apelo das lideranças germanistas para o extermínio dos primitivos-embusteiros-criminosos Mucker alcançou seu objetivo (Biehl, Mügge, p. 183).

 

O livro de João Biehl e Miquéias Mügge apresenta um Epílogo intitulado “Além dos escritos do cárcere”, em que narram a batalha de João Jorge Klien após o massacre de 1874 e suas tentativas de recuperar a honra duramente atacada. Preso e julgado, foi colocado em liberdade somente em 1880, não sem a oposição de Carlos von Koseritz, que continuava atribuindo a Klein toda a culpa do episódio Mucker.

Nos seus escritos do cárcere, datados da década de 1870, Klein “não negava que alguns Mucker tivessem praticado atos criminosos”. Mas considerava os “verdadeiros culpados desta vergonha” não os “judiados” e “ingênuos” colonos, “mas a atuação errada e ilegal das autoridades” (Biehl, Mügge, p. 204). Passou o restante da vida tentando desfazer a imagem negativa que pairava sobre si e as famílias estigmatizadas que receberiam ainda outros duros golpes: o assassinato de pessoas ligadas ao movimento, na Fazenda Pirajá (interior de Nova Petrópolis) e na Linha Bastos (próximo a Lajeado), no final da década de 1890.  E, para reacender o ódio, o livro do padre jesuíta Ambrósio Shupp, “Os Mucker”, que reascendeu o “sentimento de insegurança e medo naqueles marcados como Mucker” (Biehl, Mügge, p. 202). Escrito em 1878, portanto, quase que no calor dos fatos, “o livro foi embargado até 1900, quando foi publicado na Alemanha. No Brasil, graças aos esforços dos jesuítas de São Leopoldo, foi lançado em 1906.” (Biehl, Mügge, p. 244). Indignados com o livro do padre Ambrósio, os filhos de João Jorge Klein deram sequência a luta do pai, buscando que a sua versão fosse divulgada na imprensa do início do século: “Klein desejava, através dos filhos, ‘ser honrado’” (Biehl, Mügge, p. 204).

Não restam dúvidas de que a obra de João Biehl e Miquéias Mügge reforça e muito as tentativas de outros(as) historiadores(as) que estão há décadas tentando denunciar um erro histórico que foi o massacre Mucker, dando voz aos colonos massacrados. Os documentos inéditos e as novas informações reveladas no livro certificam quem era quem naquela tragédia. Como declaram os autores, “muitos morreram injustiçados, levando consigo a aflição da injúria e da desonra, como se criminosos fossem” (Biehl, Mügge, p. 202). Se não houve justiça à época, e sendo a justiça divina duvidosa por ser uma questão de fé, ao menos que a História faça justiça aos Mucker.


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Os últimos momentos da vida de um peregrino

Os momentos finais da vida do eremita João Maria de Agostini. 

"Sua respiração está difícil. O peito e a cabeça apresentam contusões profundas. Segura firme um crucifixo em sua mão direita. Estirado ao chão, de bruços, puxa o ar que teima em não encher seus pulmões. A cada tentativa, a terra entra pela boca misturada com sangue.

Será meu este sangue?, pensa.

Tenta levantar-se e não consegue. Quer mexer os braços, as pernas. Nada. Agora tem certeza. É seu próprio sangue que corre pela nuca e inunda a terra que entra pela boca. Apesar da agonia, ainda pode ver. Enxerga alguns arbustos e pedras, mas são dois animais que chamam sua atenção.

Paisagem onde se passa a morte do eremita. Sul do Novo México (EUA)

O dorso da serpente brilha, e para ela vai sua atenção. Sabe de quem se trata, pois passou a vida também pregando em Seu nome. Rastejando, ela se aproxima e sussurra:

O teu orgulho te trouxe até aqui. Veja o resultado! Deverias saber como Eu trato os arrogantes, homem vaidoso! 

Antes de tentar balbuciar algo, seus ouvidos captam outras vozes. Conhece-as e entende o que dizem. Galopes fazem o chão tremer e a poeira levantar, e parecem se afastar. Tenta chamá-los, mas engasga com a terra e o sangue. O sol desponta entre as montanhas. O único som que escuta agora é o vento, que lhe traz lembranças. Fecha os olhos e vê a vida cruzar diante de si. Sente remorso, medo. Com muita dificuldade, implora:

Deus misericordioso, perdoai-me!

Após breve instante, a víbora brilhante se afasta e o coelho se materializa, dizendo:

Aceito o teu sacrifício e arrependimento. Venha comigo, filho!

Instantaneamente, a agonia passa. Não há mais ardência no peito nem latejar da cabeça. Agora é o silêncio. E no silêncio, a lucidez. Enfim, compreende: a promessa estava paga!"

Perguntas: Quem representam a serpente e o coelho? Qual era a promessa que naquele instante estava paga?

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A primeira biografia do monge João Maria

    Muito antes do que se poderia imaginar, um escritor anônimo divulgava, no jornal O Mercantil, em 16 de abril de 1851, o já extenso percurso do italiano João Maria de Agostini. E escreveu com uma riqueza de detalhes que só quem teve proximidade ao monge poderia ter feito. O artigo inicia sob o título: “O Monge do Cubatão”. Acompanhemos, assim, o roteiro do “admirável peregrino” segundo esse autor anônimo.

Serra Geral, São Paulo

   
 [O monge João Maria de Agostini] Fez sete anos de penitência nas partes mais desertas da Itália, e depois partiu de Roma para a Suíça, e peregrinou pela Germânia, Inglaterra, França, Espanha e Portugal. Da cidade de Nantes [França], embarcou no grande mar oceano [Atlântico], e desembarcou no primeiro ponto da América meridional, porto da cidade de Caracas. Dalí, com um saco de livros as costas, passou por horríveis, medonhos e desertos lugares, por entre feras e bugres, e caudalosos rios até Santa Fé de Bogotá, Popayán, Quito e o altíssimo [Vulcão] Chimborazo, as grandes Cordilheiras dos Andes, Guayaquil, de onde embarcou para o Peru, e passou por grandes áreas até Lima, e no seio destes medonhos desertos passou muitos anos.

    O trajeto dele do Peru ao Brasil, segundo este mesmo texto, incluiu navegação pelo “grande Rio Amazonas” até chegar a Tabatinga, já em solo brasileiro. Continuou por Pernambuco e alcançou o Rio de Janeiro. Após, moveu-se pelas cidades de Santos e São Paulo, “visitando muitos lugares até chegar ao Rio Grande do Sul, passando-se para Buenos Aires”. O anônimo autor também informa o modo como o monge viajava, bem como seus afazeres nesta jornada: “andando por mar e por terra em um sem número de léguas (...) e fazendo por meio de pregações, restaurar muitos altares, cruzes e capelas tanto na Itália como no Brasil e Peru.” E o autor conclui: “Este monge, maravilha do nosso século, não é prezado a pessoa alguma; vive de seu próprio suor, prega quando lhe mandam e, quando sai do deserto ou de outro lugar, não pede comida nem pousada; se lhe oferecem, recebe. (...) A regra deste venerado monge são as orações, as meditações, trabalhos, contínuo silêncio e jejuns.
    
    O autor informa que, em abril de 1851, o monge habitava a Serra de Cubatão, próximo a Santos. Este é um dado que ainda carece de esclarecimentos. O que se sabe é que, em 24 de dezembro deste mesmo ano de 1851, Agostini apareceu em São Borja, no Rio Grande do Sul, fazendo o sermão de Natal na igreja matriz da cidade. Se o autor anônimo não se enganou, o que estaria fazendo Agostini na Serra Geral paulista em abril de 1851? Vejamos uma possível resposta tendo como base as minhas próprias pesquisas e os documentos de viagem do monge que foram publicados em dois artigos de 1970, escritos pelo pesquisador italiano Flório Santini.

    João Maria de Agostini esteve no Rio de Janeiro em maio de 1849. Após deixar a cidade, tomou o rumo da Serra dos Órgãos, região montanhosa e onde se construía a Imperial cidade de Petrópolis. Inquieto e dono de uma energia sem igual, seguiu até a região mineira de Ouro Preto e Mariana, passando pelo igualmente majestoso Pico do Itacolomi. A seguir, rumou para a fazenda Monte Alto, cujo diretor Pedro de Almeida o autorizou, em julho de 1850, a ali permanecer algum tempo. E aqui nos deparamos com nova dúvida: qual local exato desta “fazenda Monte Alto”? Em Minas Gerais, São Paulo ou região serrana do Rio de Janeiro? O que parece certo é que foi em área cafeeira que Agostini ficou alguns meses daquele ano de 1850.

Pico do Itacolomi, MG


    O monge declarou ao diretor da fazenda que estava esperando um “certo Pedro Amado” trazer-lhe, da capital São Paulo, livros de orações e bíblias que seriam usados para trocar por mantimentos ou mesmo para negócio, já que o monge declarara “não gostar de pedir esmolas”. Agostini aguardou algum tempo a chegada de seus livros, permanecendo em uma caverna da região. Talvez Pedro Amado tenha se atrasado e o monge, impaciente, não quis esperá-lo. Em 20 de outubro de 1850, Agostini deixa a fazenda Monte Alto sem os livros, tomando caminho incerto. É neste momento que ele pode ter ido para São Paulo em busca das encomendas, estabelecendo-se, depois, na Serra Geral de Cubatão, próximo a Santos. Porém, estamos no campo das incertezas, e é isso que torna fascinante perseguir a trajetória deste peregrino italiano. Quando se descobre algo inédito, sempre surgem novas perguntas.

Estrada velha de Santos


    O anônimo autor do texto do jornal talvez tenha sido o próprio Pedro Amado, o sujeito que ficou responsável em levar para o monge os livros de oração e bíblias na fazenda Monte Alto. O que fica evidente é que a pessoa que redigiu o artigo do jornal conhecia muito bem a rota percorrida até então pelo italiano, certamente tendo ouvido do próprio tal itinerário.

    A pequena biografia escrita em abril de 1851 a respeito do monge “maravilha do nosso século” foi a primeira tentativa de divulgar publicamente o grandioso percurso de “um verdadeiro servo de Deus” que peregrinava por longínquas terras pregando o Evangelho. Dez anos depois, em Havana, Cuba, um fotógrafo irá tirar um retrato do monge nomeando-o como “A Maravilha do Nosso Século”, convertendo a foto em souvenir a ser vendido. Em 2019, um século e meio depois, um documentário produzido pela Plural Filmes também se rendeu à figura sem igual do monge, intitulando o trabalho “A Maravilha do Século”. Quem sou eu para questionar tais escolhas?

terça-feira, 28 de julho de 2020

Quando os militares ouviam a ciência


Em visita às aldeias indígenas do norte do Rio Grande do Sul no ano de 1848, o militar José Joaquim de Andrade Neves constatou que uma terrível enfermidade acometia os índios: a elefantíase. O aspecto da doença e as mortes estavam causando pavor aos outros índios que já abandonavam as aldeias indo refugiar-se nas matas em busca de seus próprios métodos de sanar tão medonha enfermidade.

Hoje sabemos que a elefantíase (filariose) é transmitida por mosquitos infectados por um parasita chamado Wuchereria bancrofti. Naquela época, contudo, os índios acreditavam em algum mal contagioso, que passava de pessoa para pessoa, ou mesmo em punição sobrenatural. Diante dessa situação, Andrade Neves encontrou uma solução para o caso: “parece-me acertado que estes enfermos fossem auxiliados com sustento e transporte e levados às águas minerais de Santa Maria da Boca do Monte, onde consta que iguais doentes têm melhorado.” Popularmente, tais águas eram chamadas de "águas do monge", assunto que já tratei aquiaqui e aqui.

Em resposta, o governo sul-rio-grandense (cargo ocupado por outro militar) argumentou que não havia comprovação que as águas curassem elefantíase ou qualquer doença, portanto, não investiria recursos públicos para transporte dos índios enfermos.

O general Francisco José de Souza Soares de Andrea não queria alimentar a crença popular patrocinando o transporte de doentes à Santa Maria da Boca do Monte. Sua decisão se pautava nos pareceres científicos dos médicos que haviam negado quaisquer princípios medicinais às águas.

Aquela era uma época em que militares que ocupavam cargos públicos estavam aprendendo a ouvir a ciência.